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Lições da China sobre a vida em confinamento

Agora que a América Latina é a região mais afetada pela Covid-19, chineses refletem sobre como o isolamento mudou como pensam sobre a saúde e a natureza
<p>“Agradeço que o Covid tenha nos transformado em cozinheiros.” (ilustração: Eréndira Derbez)</p>

“Agradeço que o Covid tenha nos transformado em cozinheiros.” (ilustração: Eréndira Derbez)

O Covid-19 não desapareceu por completo na China. Mas muitas regiões têm aliviado as restrições impostas pela pandemia, e a vida já parece quase normal. Outras, contudo, sofrem transformações drásticas. Agora que a América Latina e o Caribe são o epicentro da pandemia e registram mais de 250 mil mortes, moradores de Wuhan e Beijing compartilharam suas experiências de confinamento com o Diálogo Chino, oferecendo recomendações para enfrentar este momento tão difícil quanto inédito.

Alguns dos entrevistados afirmaram que a experiência os levou a redescobrir suas habilidades culinárias, além oferecer a oportunidade de refletir profundamente sobre a saúde e o bem estar das pessoas que amam e do próprio planeta — considerações comuns ao redor do mundo.

Ao mesmo tempo, os chineses tiveram que lidar com ideias racistas que pregavam que a Covid-19 era resultado de um “vírus chinês”. Eles também sofreram uma série de restrições de locomoção e informação, que muitas vezes foram confusas e pareciam mais rígidas no começo do surto.

A história de Gao Lingyuan

Na verdade, moro em Hefei, província de Anhui, no leste da China. Não temos casos novos em Hefei desde o fim de março. Muitas empresas voltaram ao trabalho e estão tomando precauções, medindo a temperatura de seus estudantes e funcionários. A situação não é totalmente normal, mas estamos chegando lá. Por causa do surto de Beijing, agora aumentamos a segurança nas comunidades para garantir que as pessoas possam ser monitoradas de perto.

Sou professor de inglês e trabalho num departamento internacional em um instituto de inglês. Do ponto de vista econômico, fui cauteloso porque estava nervoso com a possibilidade de a empresa fechar as portas. Consegui economizar três quartos do meu salário por mês. Comecei a ter mais consciência sobre meus hábitos de consumo e, depois do confinamento, vou analisar se realmente preciso comprar certas coisas.

Em relação a alimentação e saúde, também me tornei mais cauteloso, sobretudo quando se trata de comer em pequenos estabelecimentos ou comida de rua. Antes, não me importava se a comida vinha embalada ou não, mas agora compro mais alimentos embalados que não estiveram expostos a espaços abertos, onde as pessoas podem respirar sobre eles ou tocá-los.

Para ter uma vida mais razoável durante o confinamento, seja trabalhando de casa ou fazendo tarefas domésticas, o objetivo é manter-se ocupado. Há muitos dias de folga, mas é preciso ter uma rotina e segui-la, embora sempre seja possível fazer alguns ajustes para não cair no tédio. O mais importante é bota a roupa para trabalhar todos os dias.

Se o meio ambiente está doente ou não se desenvolve de maneira ideal, o mesmo vale para as pessoas.

Se eu tivesse que passar por tudo isso de novo, com certeza pediria mais comida em casa, compraria uma máquina de costura e aprenderia a fazer minha própria roupa. Mas o mais importante é que organizaria um pequeno clube para que jovens tivessem um maior compromisso social com outras culturas e para discutir as diferentes experiências que viveram durante a Covid, um espaço seguro para que os jovens conhecessem outras pessoas mundo afora.

Também aprendi que, se o meio ambiente está doente ou não se desenvolve de maneira ideal, o mesmo vale para as pessoas. Para manter nossa saúde, precisamos melhorar os sistemas de reciclagem e garantir o cuidado do nosso meio ambiente.

illustration of a Chinese man
Ilustração: Eréndira Derbez

Também alerto pessoas quando as vejo sem máscaras ou cuspindo na rua, e lhes digo que elas podem melhorar suas atitudes. Não acho que outras pessoas na China consigam dizer a outros que pratiquem bons hábitos, mas espero que tudo isso melhore.

A história de Zhao Tingting

Agora moro em Beijing. No primeiro surto de fevereiro, apenas algumas centenas de pessoas foram infectadas pelo vírus. Mas a cidade quase fechou. Os adultos trabalhavam de casa e os estudantes estudavam em seus lares. Minha filha caçula tem quatro anos. Até agora a creche está fechada e não sabemos quando abrirá de novo.

A política de controle de interações sociais se tornou menor rígida no final de maio [quando esta entrevista foi feita], mas nas últimas duas semanas [meio de junho] houve um novo surto de casos em Beijing. O controle está se enrijecendo de novo. Meu filho, que está na sétima série, está estudando de casa outra vez. Achamos que nossas vidas não poderão voltar à normalidade.

Às vezes, acho que a pandemia é uma maldição para as pessoas que exploram a Terra.

Trabalho num instituto de pesquisa que é propriedade do Estado. A pandemia não me afeta economicamente. Como não saio para jantar, não levo meus filhos para atividades extracurriculares ou viajo, estou reduzindo meus gastos e consigo economizar mais dinheiro. Trabalho de casa desde o fim de janeiro. No entanto, como meus filhos também estão em casa, meu trabalho não é eficiente. Sou menos produtiva como pesquisadora, leio menos e escrevo menos. Às vezes fico deprimido demais para fazer alguma coisa. Não saio de Beijing há quase seis meses.

Reduzir a interação entre pessoas pode ser a forma mais eficaz [de não contrair o vírus]. Mas é impossível e desumano. As pessoas se sentem deprimidas quando ficam isoladas em suas casas por muito tempo.

O serviço de entrega na China é muito conveniente. Fazemos compras online e recebemos a entrega de alimentos na porta de nossa unidade residencial. Há muitas unidades residenciais desse tipo em Beijing e em outras grandes cidades da China. Essas condições de vida fazem com que a mobilidade da população seja mais fácil de controlar.

Contudo, presto mais atenção à saúde e comecei a fazer exercícios físicos com regularidade. Sou mais pessimista em relação ao futuro dos seres humanos em geral. Às vezes, acho que a pandemia é uma maldição para as pessoas que exploram a Terra.

Não acho que as pessoas estejam refletindo sobre essa situação de maneira coletiva. As pessoas na China parecem se apegar de maneira mais firme aos seus valores e ao sistema político. Parece que a pandemia e a pressão internacional conseguiram manter o povo chinês mais consolidado como nação.

Não coma animais selvagens! Acho que esta é a lição mais importante sobre o meio ambiente. Mas acho que os que gostam de comer animais selvagens continuaram com o hábito, e os que não comem não os consumiriam de maneira alguma. Não acho que a atitude geral em relação ao meio ambiente mude muito na China.

A história de Deng Wenxuan

Moro em Beijing, e a vida voltou ao normal para mim. Todos os restaurantes estão abertos, mas as boates ainda não. As salas de cinema estão começando a abrir. Sou autônoma. Sou tradutora e, por isso, não tenho muito trabalho. Mas sem dúvida não estou numa situação tão ruim em comparação com pessoas que perderam seus empregos.

Minha família está em Wuhan. A situação por lá é muito semelhante à de Beijing, mas recentemente minha mãe comentou que ainda há casos de Covid em Wuhan, embora o governo não comunique essa informação. Ela não se sente muito confortável com esse cenário. Ela sente que o vírus ainda está à espreita.

Se tivesse que passar pelo confinamento de novo, provavelmente não compraria tanta comida. Comprei quantidades inacreditáveis de grãos. Comprei comida suficiente para aproximadamente um ano. É difícil saber quais notícias são reais e quais são falsas. Realmente sentimos que isso seria o apocalipse. Comprei remédios demais e agora tenho que terminar de tomá-los, o que é chato. Bandagens, xaropes para tosse, curativos e desinfetante.

O dinheiro é importante mas não deve substituir a felicidade e a saúde.

Descobri que a comida caseira é muito melhor que a dos restaurantes. Comecei a conhecer os alimentos de verdade e agradeço que o Covid tenha nos transformado em cozinheiros.

illustration of a family eating at the dinner table
Ilustração: Eréndira Derbez

Sem dúvida sinto que quero ser mais saudável, a gente se dá conta de que isso é o mais importante. Quando a pandemia ainda estava em Wuhan, assisti a um vídeo de um homem de 50 anos que morreu em seu apartamento. Tinha dinheiro, mas nada disso foi útil na hora de morrer. A saúde e a felicidade são mais importantes do que a ambição ou o dinheiro; o dinheiro é importante mas não deve substituir a felicidade e a saúde.

O primeiro mês foi muito estressante. Eu ligava (para minha família em Wuhan) três vezes ao dia. Os hospitais estavam lotados, as pessoas caíam no meio da rua. Não sabíamos se era algo que se tornaria muito maior do que o que estávamos vendo, havia tanta incerteza. Julgando pela informação que estávamos recebendo, pela primeira vez senti que as coisas poderiam entrar em colapso de vez. Em um contexto no qual ninguém realmente confia nos meios de comunicação oficiais, não sabíamos no que acreditar.

Antes de 26 de janeiro, o governo não havia se reunido e decidido censurar a internet, e havia muitas vozes dissidentes. Nesse período de três dias, havia uma grande raiva em relação à situação real.

A censura se tornou mais draconiana depois da Covid

Pudemos ver em tempo real como o conteúdo e os jornalistas cidadãos estavam sendo eliminados. A maior parte da informação estava no Twitter chinês. Eles deletaram essas publicações e contrataram pessoas para fazer comentários positivos, às vezes podíamos identificar situações reais mas logo [o governo] as substituía por outras de conteúdo positivo.

Provavelmente todos ao meu redor estariam de acordo com o fato de que as pessoas realmente perderam a confiança.

É preciso pagar um preço muito caro para fazer jornalismo cidadão na China. Li sobre um homem que compilou informações sobre os protestos e agora foi condenado a quatro anos de prisão. A censura se tornou mais draconiana depois da Covid. Estamos vivendo sob estrita censura. Alguns chineses compilaram todos os informes de notícias, eliminaram informação sobre o Covid, publicaram as listas no github.com e finalmente foram presos. Não sabemos o que está acontecendo com eles.

citizen journalism during lockdown illustration
Ilustração: Eréndira Derbez

Não temos um espaço público gratuito para trocar ideias e pensamentos, e por isso não há uma reflexão pública [sobre a pandemia]. Talvez isso exista em lugares muito limitados, no marco de uma comunidade pequena, mas não acho que haja uma conversa enquanto sociedade.

Podemos falar disso pessoalmente, mas mesmo quando conversamos no WeChat substituímos as palavras que poderiam ser detectadas pela IA (inteligência artificial), temos que pensar no que não podemos dizer no caso de que algo nos comprometa. Não é um bom lugar online para falar sobre esse tipo de coisa.

A história de Fang Yao

Sou jornalista independente, escrevo sobre temas culturais e sociais para o Instituto Internacional na China e sobre Wuhan. Moro em Beijing e em Wuhan. Em geral, em Wuhan as coisas estão voltando à normalidade. No último mês não houve novos casos, os negócios estão voltando ao normal e, nas ruas, as pessoas estão voltando ao trabalho.

Hoje em dia há um código de saúde que funciona como sua identidade digital. Todo mundo tem esse código. Se você está saudável, seu código é verde. Se esteve em contato com alguém que contraiu o vírus ou que tem sintomas, seu código é amarelo e, se você tiver recebido um resultado positivo para o vírus, o código é vermelho. Para mover-se livremente pela cidade é preciso ter o código verde.

Para mim, a parte mais difícil foi entre janeiro e abril. Depois de 15 de fevereiro ninguém podia sair de suas casas por ordem do governo, e por isso trabalhei como voluntário em grupos do WeChat. Havia muitas pessoas que pediam ajuda para registrar informação ou que precisavam de ajuda para conseguir comida. Alguns não sabiam a quais hospitais deveriam ir para realizar certos procedimentos. Me ofereci como voluntária para fazer chamadas e ajudar pessoas a receberem tratamento. Trabalhei das 9 da manhã até a meia-noite porque havia muita gente pedindo ajuda. Muitas pessoas não conseguiram receber assistência médica.

Muitos hospitais não aceitavam pessoas com menos de 65 anos, e não podíamos fazer nada quanto a isso. Apenas podíamos ajudar as pessoas a conseguir comida ou medicamentos. Tudo ainda estava se desenrolando. Havia muitas informações falsas.

Há algo que você sempre deve lembrar sobre este período: em algum momento chegará ao fim.

Embora eu tenha mais de 3 mil mensagens no meu WeChat, e as pessoas ainda tentem se comunicar comigo, muitas vezes não posso falar com elas porque tive um colapso emocional. Depois de três meses como voluntária, agora não acompanho mais as notícias, leio livros que não tem relação com o coronavírus. Leio e faço trabalhos de tradução, já que a situação se tornou impossível para mim.

Se você quer preservar sua saúde [mental], é melhor não prestar tanta atenção nas notícias. Este é um momento em que podemos aprender coisas que sempre quisemos. Podemos ler mais livros ou ligar para os amigos.

Acho que é importante registrar o que está acontecendo. Seja sincero e o mais preciso possível, documentando os registros de um ano tão importante na história da vida de cada pessoa.

Agora, dou valor a tudo que posso. Antes, gastava mais dinheiro. Tinha o costume de comprar muitas coisas de que não precisava, mas como o sistema de entrega entrou em colapso, agora apenas tenho o necessário para a vida cotidiana. Não se trata da situação econômica; a questão é saber o que é realmente necessário na vida. É importante falar com as pessoas. O consumismo está se tornando entretenimento, é uma perda de tempo e de dinheiro. Hoje, observo minha vida como era antes e acho que inconscientemente estava vivendo uma vida que não queria de fato viver.

As pessoas aqui ainda estão perdidas nas sequelas do coronavírus, a situação ainda está se desenrolando. Algumas pessoas pensam que não tem nada a ver com o governo ou com o sistema, mas outras pensam em responsabilizar o governo. Também há muitos que apenas querem voltar à vida normal e não pensar no que aconteceu, porque foi horrível.

Mas há algo que você sempre deve lembrar sobre este período: em algum momento chegará ao fim.